BALADA DO TEMPO

Deram-me vida
Lentamente
No espantoso mistério da gestação
E modelaram a fragilidade do meu corpo
Inconscientemente
Na rendida obediência de fecundar
E o parco gozo duma ejaculação
Foi a minha primeira semente
A minha primeira ilusão!

Com um grito de dor e um golpe de tesoura
Mostraram-me a chama macilenta do petróleo
E apontaram-me o bico de um peito
A rebentar na cumplicidade do seu leite multiplicador.

Olharam-me longamente num êxtase comovido
E aquela pequena raiz
Aquele pequeno mundo mal arredondado
Pôs-se a crescer e a pensar
Sem sequer saber aonde
Aquela estrada ia parar!

Dessa raiz à terra recém lançada
O tempo pôs-se a tecer um tronco
E o tronco encheu-se de loucas folhas verdes
Folhas verdes que o tempo não soube perdoar!

E eu tronco estéril tronco decepado
Pequeno mundo sem eixo e sem órbita
Mal arredondado
Vou dobrando noite e dia mudamente
Pois que cada gesto que eu pudesse descrever
Cada grito que eu ousasse desgarrar
Seria uma confissão que o mundo não merece
Um mondo onde tudo passa tudo morre tudo se esquece!

Agora corrompido lúcido emancipado
Pequeno mundo mal arredondado
Vou remoendo e digerindo
Os escombros do meu sonho desolado.

Roubaram-me a vida lentamente
No espantoso mistério do tempo que passa
E gradualmente vou descendo
Para dentro daquela terra onde há muito
O meu sonho fôra sepultado.


Rogério do Carmo
Lisboa, 14/3/1959